Recém-eleito para o segundo mandato como governador de Sergipe, Marcelo Déda diz ao Valor Econômico que os estados precisam de mais autonomia em suas gestões. “Os Estados são reféns da Receita Federal”, destaca o governador. A seguir, a entrevista publicada em 03 de janeiro de 2011:

Entrevista: Deda defende mais transparência na gestão de tributos

“Os Estados são reféns da Receita Federal”

Ana Paula Grabois | De São Paulo

Jorge Henrique /Ag. A Tarde/Folhapress

O governador reeleito de Sergipe, Marcelo Déda, durante posse: “Relação do PT com Dilma será menos simbiótica do que com Lula e mais institucional”

Reeleito para o comando do menor Estado do país, o governador de Sergipe, Marcelo Déda (PT), começa o segundo mandato com demandas para a presidente eleita por seu partido, Dilma Rousseff. Fundador do PT em Sergipe e ex-prefeito de Aracaju, Déda defende a reforma no Sistema Único de Saúde (SUS) com o aumento do volume de recursos e a melhoria na qualidade da gestão do serviço. “Há uma crise de financiamento na saúde pública brasileira”, diz o governador.

Outra frente pela qual promete munir esforços é por uma mudança na relação com o Tesouro Nacional. Dependente de transferências federais para cobrir os gastos do orçamento, Déda defende que os Estados sejam mais ouvidos e participem da discussão sobre a forma como a União gere os tributos compartilhados, aqueles repassados aos Estados, como o Imposto de Renda e o IPI.

Politicamente, Déda começa o governo em situação confortável – tem maioria na Assembleia Legislativa e sete dos oito deputados federais eleitos no Estado são da sua base de apoio. Ligado ao presidente nacional do PT, José Eduardo Dutra, o governador de Sergipe vislumbra uma relação mais institucional de Dilma Rousseff com o partido e menos simbiótica do que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva manteve com a legenda. Contemplado por verbas do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o governador reeleito planeja a manutenção da parceria em obras de saneamento, habitação e de infraestrutura para o turismo.

A seguir, trechos da entrevista concedida ao Valor:

Valor: O senhor acredita que a CPMF será um dos principais debates dos governadores com o governo Dilma?

Marcelo Déda: A abordagem de certas questões é feita de maneira equivocada. Coloca-se o carro adiante dos bois. O debate que os governadores do Brasil têm que travar com o governo federal é sobre o futuro do SUS. Hoje, a melhoria da saúde pública no Brasil demanda um novo modelo de financiamento. Não sei qual é a solução. Precisa de mais dinheiro.

Valor: O problema é a falta de recursos ou a má gestão?

 Déda: Precisa de mais dinheiro mesmo. Pode comparar com os gastos de outros países. Mas só dinheiro não resolve, precisa de mais gestão. Vivemos aquela história do cachorro correndo atrás do próprio rabo. Há uma demanda por expansão de serviços e de investimento, precisa ampliar a rede. Você conclui o investimento e logo em seguida há uma demanda imensa de custeio para manter. É preciso aumentar os recursos da saúde, rever o financiamento e, ao lado disso, discutir um modelo de gestão mais eficiente e que tenha como foco a melhoria da prestação do serviço.

Valor: Quais são os governadores que pensam do mesmo modo?

Déda: Todo mundo será capaz de debater esse assunto porque está pegando no pé de todos.

Valor: Os governadores da oposição já se manifestaram contra.

Déda: Eles colocaram como uma questão mais política. Porque o PSDB tem insistido em bater de frente com a realidade. É o apelo do PSDB de ser oposição pela oposição. Todo mundo sabe a posição do José Serra. O Serra fazer autocrítica agora, depois que deixou o governo do Estado de São Paulo? Houve recuo nas opiniões de Anastasia (governador de Minas Gerais) e de outros. A presidente deixou claro que se os governadores quiserem abrir o debate, estava disposta a ouvir.

Valor: Existe alguma mobilização entre os governadores?

Déda: Não. Esse assunto foi muito mal posto e mal tirado da agenda. A CPMF é um ponto fora da agenda. Mas não pode ficar fora da agenda a discussão do financiamento da Saúde. Se não é a CPMF, outra alternativa tem que ser criada para reforçar o orçamento da Saúde. Com os preços praticados pelo SUS para contratar consultas, exames e cirurgias pagos aos Estados não se conseguirá avançar na qualidade do sistema. A tendência é estagnar. Há uma crise de financiamento na saúde pública brasileira. Não é a única razão para a má prestação de serviços, há uma crise de modelo gerencial. Aqui está falando um governador que enfrentou a resistência corporativa, mas aprovou um novo modelo de fundações. Fizemos fundações públicas de direito privado, é o modelo que o Temporão (ex-ministro da Saúde) mandou para o Congresso e não foi votado. O Estado é controlador, mas tem flexibilidade, tem contrato de gestão, trabalha com metas, meritocracia e ferramentas que buscam a qualidade do serviço prestado. Fizemos uma reforma sanitária aqui e estamos parados no financiamento.

“A decisão solitária da Receita Federal custou R$ 40 milhões a menos na receita mensal do Estado de Sergipe”

Valor: Qual a posição do senhor sobre a repartição dos royalties?

Déda: A discussão zerou. Isso vai ser retomado pelo novo Congresso. Defendo o direito dos Estados produtores de ter o tratamento diferenciado.

Valor: Não necessariamente como era o pagamento nos blocos fora do pré-sal?

Déda: É preciso ter uma discussão que leve em conta dois princípios. Há uma produção de petróleo tradicional cuja regras podem ser reanalisadas. No marco legal existente, é preciso ampliar normas que ofereçam uma retribuição mais consequente para os Estados produtores. Até por decreto é possível consertar algumas questões. E tem a realidade nova do pré-sal, que precisa ser discutida. O pré-sal é uma riqueza do Brasil, é uma riqueza exclusiva dos Estados que têm pré-sal, que devem ter tratamento diferenciado.

Valor: Como seria a divisão?

Déda: Vamos discutir quais percentuais são esses. Mas é preciso zerar esse debate. O Rio reagiu de maneira muito peremptória, estourada, pouco diplomática, declarou guerra ao Brasil. Não podia sair coisa que prestasse. A discussão foi colocada como se os demais Estados quisessem roubar o Rio de Janeiro. Isso criou um fosso que tirou a racionalidade do debate.

“O Rio reagiu de maneira estourada, pouco diplomática, declarou guerra ao Brasil. Não podia sair coisa que prestasse”

Valor: A postura do governador do Rio, Sérgio Cabral (PMDB), deveria ser outra?

Déda: É preciso zerar e reabrir o debate.

Valor: Sergipe depende muito de transferências federais?

Déda: Depende muito, em torno de 47% das receitas são transferências do Fundo de Participação dos Estados (FPE). Em 2010, ocorreu um desastre. Recebemos R$ 250 milhões a menos da nossa projeção de receita, como se tivéssemos recebido apenas 11 cotas mensais do FPE no ano. Tivemos um fim de ano extremamente difícil, fizemos mágica para pagar a folha. Precisamos renegociar o pagamento dos nossos contratos sob pena de ter dificuldade de pagar a folha, suspendemos ou reduzimos o ritmo de obras públicas. A cada mês tem sido contar centavo por centavo.

Valor: Qual a razão da redução?

Déda: É decorrente da baixa performance de alguns tributos, do IPI, por conta de isenções, da política de renúncia do governo federal. Mas houve uma queda dramática da arrecadação do Imposto de Renda das empresas. Só a Receita Federal pode explicar as razões.

Valor: Por quê?

Déda: Tem a realização de prejuízos de 2009 e a compensação tributária. Há segredos. Ainda há, infelizmente, uma caixa preta que impede os Estados a ter noção exata. Isso tem que ser uma agenda do futuro governo, precisamos ter relações mais transparentes com o Tesouro Nacional, sobre os tributos partilhados conosco. Já não basta um sistema federal injusto, que concentra recursos na mão da União, já não basta um processo que afasta os Estados de compartilhamento de contribuições, temos ainda uma imensa dificuldade de acompanhar a performance de tributos compartilhados pelos Estados. E outra, ficamos reféns de decisões da Receita. Em outubro, a Receita resolveu fazer uma devolução de R$ 3 bilhões de Imposto de Renda Retido na Fonte. Fez sem consultar os Estados e reduziu drasticamente o FPE. A agenda do governo federal não ouve os Estados na hora de gerenciar a arrecadação dos tributos compartilhados. Os Estados são surpreendidos na hora, naquele momento, por uma decisão da Receita de devolver o IR naquele mês. A decisão solitária da Receita custou R$ 40 milhões a menos na receita mensal de Sergipe. Não temos nenhuma influência nesse calendário nem somos sequer preparados para ele.

Valor: Os Estados deveriam participar mais dessas decisões?

Déda: A relação do Tesouro com os Estados tem que mudar, é uma relação ainda muito ruim do ponto de vista da União com os Estados. É um ponto indispensável na agenda federativa do novo governo. Os Estados precisam ser mais ouvidos, não podem ser apartados na discussão pela forma como a União gerencia os tributos compartilhados.

Valor: Quais são os investimentos prioritários para o segundo mandato?

Déda: Vamos continuar com os investimentos na área social, na expansão do ensino profissionalizante e na interiorização do ensino superior por meio de parcerias com a Universidade Federal. Também estamos consolidando o novo modelo de saúde, com novos hospitais regionais no interior. Trabalhamos com plano de apoio de atenção básica em parceria com os municípios, com construção de clínicas de saúde da família e suporte para ambulâncias. Na atenção hospitalar, construímos UPAs com o governo federal e com os municípios e recuperamos hospitais. Nossa ideia é interiorizar a atenção hospitalar para criar um sistema mais eficaz e consolidar o hospital geral na capital como de pronto-socorro. Mudamos o padrão de financiamento, somos um dos poucos Estados que cumpriram a Emenda Constitucional nº 29. E fizemos um novo paradigma com as fundações. No primeiro mandato, cumprimos a consolidação de um novo sistema de saúde. A segunda etapa é melhorar a prestação de serviços, o que significa aumentar os gastos de custeio e precisar de mais dinheiro.

Valor: O que muda no PT com o governo Dilma?

Déda: É muito cedo para se conhecer o estilo da nova presidente. É óbvio que haverá um novo estilo na forma de conduzir o governo federal, de conduzir as relações entre o partido e o governo. Ela tem tido uma relação muito próxima à direção partidária, especialmente pelo papel que exerceu desde o início da campanha, tanto do (José Eduardo) Dutra, do (Antonio) Palocci e do (José) Eduardo Cardozo. Será um relacionamento onde o diálogo com o partido será muito constante.

Valor: Será outro diálogo?

Déda: Sim, porque a relação de Lula com o PT é mais orgânica. Lula é o fundador do Partido dos Trabalhadores, é o líder maior do partido. A capacidade de o PT se sentir representado pela própria figura de Lula e pelas ações do Lula é muito grande. É uma identidade mútua. O partido e o presidente eram como figuras siamesas. Sem Lula, o PT não existiria como é hoje. E Lula sabe que não chegaria onde chegou sem o PT. Era uma relação simbiótica.

Valor: E com a Dilma?

Déda: Agora tem condições de ser uma relação mais institucional. É uma presidente que é do partido, que reconheceu de maneira explícita e até emocionante quando citou o Lula no discurso de vitória e quando lembrou da relação dela com o partido e com a militância na reunião no diretório. Em uma leitura mais psicológica, foram os únicos momentos em que ela chorou abertamente, que a emoção aflorou de maneira mais significativa. Não é à toa. São sinais do emocional que traduzem muito o respeito e a relação que ela pretende ter com o PT. Essa relação parte do primeiro princípio que ela se considera membro do PT, uma presidente do PT, portanto, alguém disposta a compreender o seu papel como dirigente, como integrante do partido. Mas ao mesmo tempo está contido no seu discurso que ela vai liderar um governo de coalizão e precisar ouvir outros partidos. Será uma relação de muita interlocução, de muita transparência.

“A CPMF é um ponto fora da agenda. Mas não pode ficar fora da agenda a discussão sobre o financiamento da Saúde”

Valor: Ela vai ter que mostrar mais ao partido o que vai fazer?

Déda: As relações partidárias não são essa coisa, como se o partido fosse uma pessoa com outra sentada numa sala escura conversando. Não é assim. As formas de expressão do partido vão desde a direção nacional até a relação com governadores, deputados, com a própria base social do partido. Será uma relação institucional. Porque será necessário ao PT construir uma relação em que compreenda seu papel de partido e, portanto, possa ter um diálogo propositivo, de quem sabe que é o partido da presidente, apresentando propostas, projetos, ideias. Ao mesmo tempo, um partido que compreenda que a presidente não governará apenas para o PT. A presidente precisa liderar uma coalizão e o PT tem o dever de ajudá-la, o que não inibe a obrigação que o partido também tem de contribuir, de buscar ver as suas teses e as suas ideias levadas em conta na discussão política do governo, mas sem hegemonismos, sem a visão equivocada de que a presidente ficará de alguma maneira amarrada ao PT porque é o seu partido. Isso tudo promete ser uma relação baseada em lealdade, ela compreendendo o papel que o PT não pode abdicar e o partido entendendo o papel que ela tem que ter sob pena de não conseguir coordenar uma coalizão complexa.

Valor: Mudará a forma de participação do PT no governo?

Déda: O PT tem o dever de buscar, ter uma representação no governo à altura da relevância política que tem no projeto.

Valor: Mas abrindo espaço para os outros partidos?

Déda: Não estamos discutindo um tratado de filantropia, estamos discutindo a forma como um partido político ao qual é filiado a presidente da República e ao qual é filiado o ex-presidente buscará estar presente no governo onde ele é a cabeça da coalização. No primeiro momento, ter clareza que o partido precisa estar representado com qualidade e expressão que traduza a real importância e o peso que o partido tem na sociedade brasileira, na construção do projeto que Dilma representa e no parlamento. Segundo, o PT precisa entender que não governará sozinho, governará numa coalizão, precisará ter habilidade para que a sua presença no governo não sufoque as demais siglas. Mas não pode ter uma visão caridosa ou filantrópica de reduzir a sua importância para ser simpático a aliados.

Valor: A relação da presidente eleita com o PMDB será mais difícil?

Déda: O PT e o PMDB são os dois grandes partidos da coalizão. É natural haver disputas por espaços e por influência política no governo. É do próprio conceito de coalizão essa tensão. Tem um governo se formando, cada partido que integra essa coalizão vai querer mostrar-se na disputa pelo despacho, até para dialogar como o eleitorado, com seus representados, com a sua base. É assim na política democrática; os partidos se mexem, se movem. É preciso que todo esse movimento legítimo se subordine ao interesse maior, a construção de um governo que cumpra os seus compromissos, que execute com competência e eficácia o programa que apresentou à nação brasileira. A guardiã desse projeto é a presidente. É até perdoável que os partidos cometam um excesso ou outro na disputa por espaço. É por isso que a última palavra tem que ser da presidente, os partidos têm que estar preparados para compreender isso.

Valor: Qual será a pauta dos governadores da base no governo Dilma Rousseff?

Déda: É fundamental que a presidente e o núcleo mais próximo dela compreendam que governabilidade não é apenas a relação do governo com o Congresso, a mola mestra da governabilidade do presidencialismo de coalizão que vivemos. Mas integra o conceito de governabilidade a relação do governo com os movimentos sociais, com os governadores e a capacidade que esse governo tenha de traduzir na sua composição as regiões do Brasil. De modo que não se perca nas articulações de bastidores de Brasília a dimensão nacional que o governo deve ter para que não corramos o risco de reeditar paulistérios ou construir governos que representem pouco regiões cujo papel decisivo na eleição da Dilma foi indiscutível. Não é regionalismo isso, um governo que sai das urnas não pode afastar-se da dimensão nacional.

Valor: No PT, isso mudou com essa nova direção?

Déda: Sim. Assistimos nos últimos quatro, dez anos, um processo onde o partido se espalhou. Ganhou governos em todas as regiões, está implantado no Brasil. A própria chegada do Dutra na direção revela a disposição de um partido mais amplo, integrado à realidade eleitoral e política de sua expansão.

http://www.valoronline.com.br/impresso/politica/100/362681/os-estados-sao-refens-da-receita-federal

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