por  Marcelo Déda Chagas

Eu não sei quando comecei a gostar de futebol. Não me recordo se as peladas infantis com bolas de meia na Praça de São João ou o corre-corre nos recreios do Grupo Fausto Cardoso, em Simão Dias, interior de Sergipe, são os responsáveis por me apresentar o meu esporte favorito. Mesmo sem provas concretas, me atrevo a dizer que a paixão pelo Flamengo veio antes do amor pelo futebol.

Lá em casa não havia fanáticos pelo esporte bretão. Meu pai, talvez para honrar as raízes ibéricas do seu nome, Manoel Celestino, declarava-se torcedor do Vasco, mas não me lembro de um grito de gol entoado por ele durante um jogo. Cacau, meu irmão mais velho, já torcia pelo Flamengo e até hoje reivindica ter me introduzido na nação rubro-negra. Não sei se foi assim.

Guardei na memória um momento único, sem data precisa, nem certezas absolutas, mas que registrei como uma verdadeira e autêntica epifania.

Era uma manhã quente na casa do meu avô, e eu estava num quarto de despejo vizinho à cozinha e paralelo a uma imensa cisterna horizontal, onde se armazenava água da chuva. No quarto estavam jogados dezenas de jornais velhos e traquitanas abandonadas. Eu me vejo menino revirando aqueles papéis misteriosos. Já conhecia as letras, mas ainda não dominara o misterioso ofício de juntá-las, de lhes dar sentido, de com elas produzir palavras, articular frases, de criar ou decodificar ideias. Virgem de todas as gramáticas, o que procurava eu naquele quartinho esquecido? Imagens, as valiosas imagens que ilustravam os jornais daquela época.

Charges publicadas na “Semana”, jornal do meu avô, histórias em quadrinhos de edições antigas dos jornais do Sul, fotos que mostravam pessoas que eu não conhecia. De repente um jornal grande, impresso num papel cor-de-rosa, com letras em preto e vermelho, me chamou a atenção (muito tempo depois descobri que era o “Jornal dos Sports”).Em uma das suas páginas, como se fora um pôster, destacava-se uma foto gigante de um grupo de homens reunidos em duas filas, uma em pé e outra agachada. Eles vestiam uma camisa cuja beleza deslumbrou os meus olhos e invadiu minha alma com sentimentos que até hoje se repetem. Com listras paralelas e sucessivas nas cores preto e vermelho, a camisa traduzia de imediato a ideia de luta, de raça, de bravura, paixão e beleza. Aquele grupo e aquele uniforme me remetiam a um exército mítico, Macistes e os Argonautas capturados em uma sessão de matinê. Quem sabe personagens de alguma história de Trancoso contada por Tia Esterzinha num dos intervalos da novela radiofônica “O direito de nascer”?

No meio da foto, alguém segurava uma bola – couraça, como se dizia naquele tempo – quase como um símbolo de poder, um cetro mágico de cujo manuseio nasciam as vitórias daqueles heróis. Não guardei lembrança de nenhum rosto, nem de nomes, nem de datas, mas me recordo que no peito dos guerreiros três letras se entrelaçavam dificultando ao menino ainda em alfabetização discerni-las: C-R-F.

Não sei quanto tempo eu passei examinando aquela foto e preso ao magnetismo daquela camisa. Fiquei tomado por essa revelação e preso à angústia de não compreendê-la até que alguém, não me lembro quem, entrou no quarto e me sacudindo pronunciou a frase fatal, canônica, que aspergiu sobre mim um batismo efetivo, traduzindo aquele momento e dando nome àqueles sentimentos que tomavam conta do meu coração de menino:

– Marcelo, é o Flamengo!

Deste dia em diante minha vida mudou. Ganhei da minha Tia Didi um radinho de pilha para ouvir os jogos transmitidos pela Rádio Globo, sempre encostado ao poste de luz para melhorar a recepção do sinal. Descobri que a minha cidade era povoada por centenas de membros da nação rubro-negra, e entrei de cabeça na minha primeira tribo.

Logo depois, vesti uma camisa do Flamengo, cujo tecido grosso, similar a flanela, provocava rios de suor na canícula simãodiense. Ataquei o juízo do meu pai por semanas, até que ele comprou a revista especial do Flamengo, da coleção “Grandes Clubes Brasileiros”, editada, salvo engano, pela Rio Gráfica, com toda a história do clube. Comemorei vitórias fantásticas, mas senti o travo amargo da derrota, a mais terrível delas em 1970, ao vivo, no Batistão, quando o Bahia, jogando em Aracaju depois do desastre da Fonte Nova, derrotou o Mengo com um gol de Baiaco. Sofri, mas vi Ubirajara, Paulo Henrique, Onça, Tinteiro, e o inesquecível Fio Maravilha.

A dor da derrota era anestesiada pela ansiedade de voltar a Simão Dias e narrar a epopeia à roda de amigos que com certeza se reuniria na porta da igreja, após a missa. Esperei meses para que aquele jogo decisivo contra o Vasco (rival absoluto, antagonista mitológico a marcar as grandes pugnas e encenar as grandes batalhas) fosse exibido pelo Canal 100, no Cine Brasil, alimentando-me com imagens inesquecíveis e fornecendo argumentos para polêmicas intermináveis sobre pênaltis não marcados, impedimentos inexistentes e todo o perverso arsenal de maracutaias dos juízes ladrões, sempre conspirando contra o Fla.

Tudo isso me veio à cabeça durante essas rodadas finais do Campeonato Brasileiro que veio consagrar o método de pontos corridos (prefiro o mata-mata de quadrangulares e hexagonais, mas dou a mão à palmatória). O Flamengo, dirigido por um dos seus mais queridos ex-atletas, Andrade, integrante daquele time que nos anos 80 encantou o mundo, com Zico, Nunes, Júnior, Leandro e tantos outros, realiza uma campanha à altura da sua história.

Uma equipe motivada, bem armada, ofensiva, tendo no comando do seu ataque Adriano, um verdadeiro imperador, servido pelo talento do grande Petkovic na armação, a relembrar os velhos pontas de lança, e protegida por volantes eficientes, uma zaga honesta e um goleiro, Bruno, terror dos cobradores de pênaltis. Emoldurando tudo isso, a força avassaladora da torcida impulsionando o time, quebrando recordes de renda e construindo um dos mais belos espetáculos que o esporte proporciona – não há um canto do Brasil onde o Flamengo não seja paixão majoritária. Por tudo isso, estamos no páreo outra vez, disputando sem favores um campeonato que já conquistamos por cinco vezes.

Torcendo nestes últimos jogos, percebi que nunca me arrependi da minha opção flamenguista. O primeiro presente que ofereci aos meus cinco filhos foi uma camisa do Mengo, o manto sagrado. Até hoje nem as meninas nem os meninos capitularam, muito pelo contrário, criam sempre um momento mágico a cada vez que nos encontramos para assistir juntos a uma partida. Orgulho-me de ter discursado como representante do PT na sessão solene que comemorou o centenário rubro-negro na Câmara dos Deputados – o que me garantiu um diploma oferecido pelo clube, onde está escrito: “Deputado da Nação Rubro-Negra”.

Hoje (domingo) e nos próximos dias, o furacão rubro-negro voltará a mexer com os nossos sentimentos em partidas decisivas. Não sei se conseguiremos o hexa, mas tenho certeza que o Flamengo já cumpriu uma grande missão: recuperou o prestígio e o respeito, devolveu a alegria à sua torcida e fez mais belo e competitivo um campeonato que parecia alérgico a emoções. Assistir aos últimos jogos do meu time me trouxe de volta a beleza daquele momento mágico da minha infância em que fui arrebatado, numa epifania rubro-negra, para a paixão flamenguista. Enquanto relembro os últimos jogos, aquela frase ouvida quarenta anos atrás se mostra mais atual do que nunca: É o Flamengooooooo!

Texto publicado no sítio web oficial do Clube de Regatas Flamengo em 21/11/2009.
Disponível em: http://www.flamengo.com.br/site/noticia/detalhe/7327/flamengooooooooo

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